domingo, 4 de janeiro de 2009



- Tá, dizia a mulher, e emendava a prosa com tanto verbo quanto lhe fornecesse o miolo. Falava que nem a boca, havendo ouvinte ou não, era dela a palavra, esse comichão misterioso. Se faltava assunto repetia antigos, que arquivos tinha de montão. Tá, era a tesoura com que cortava o dizer de qualquer um. Nada lhe interessava mais que a própria opinião. Se não sabia algo verbalizava os próprios questionamentos ao infinito. Perguntava, mas não esperava nenhuma resposta. Ela odiava televisão porque não dava espaço à sua conversa. Novela e filme até que ia, ela enfiava na trama o seu papel. Dizia o que os protagonistas deviam ter dito, feito ou, explicava a quem estivesse por perto o que acontecia na tela.
Nunca atinava, a Dona, que alguém pudesse entender qualquer cena sem a sua demão. Achava-se generosa por estar disposta a esclarecer os motivos ocultos do galã, os sentimentos da mocinha e os possíveis desdobramentos do enredo. Com música era a mesma coisa, explicava a letra, contava a vida de quem cantava e fazia a sua crítica, nem sempre favorável. A tudo podia acrescentar seus reparos.
Ir ao médico era outro acontecimento. Gostava dos que faziam perguntas, curtas, óbvio. Detestava os que queriam explicar a situação. Com um “tá” enfático ela cortava o doutor e partia para expor o seu diagnóstico, sempre mais prolixo e detalhado.
Converteu-se a crente, mas logo desviou-se do aprisco. Não dava conta de ouvir sermão sem dizer nada, sem corrigir o pobre pastor. Fazia isso baixinho para quem estivesse por perto. Acabou exorcizada um bom punhado de vezes. Só podia ser demônio, aquele descontrole.
Resolveu assumir seus exus e foi para um terreiro. Lá também não deu certo, levou pito dos dirigentes, colocaram-lhe um ebó e ela descrençou. Voltou ao catolicismo, passou a freqüentar uma paróquia grande onde era comum um zunzunzum durante a missa e lá fez-se em casa. Além disso, descobriu a confissão, maravilhoso sacramento e, doravante, esmerou-se com empenho a pecar e quando não tinha estoque suficiente de pecado, inventava e, depois, confessava que inventara, repetindo detalhadamente cada invenção e o remorso que sentia por ter ficcionado em tão séria situação. Não elegeu um confessor, preferia ouvidos virgens e capazes de surpreender-se diante de sua capacidade de falar.
Só lhe assustava uma coisa, que a morte lhe tirasse a voz. Ainda bem que não faltavam médiuns!

Onaldo Alves Pereira

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