sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O bom guia cego

Antes mal acompanhado do que só. Um guia cego é melhor do que nenhum. Caindo os dois no buraco pelo menos podem ter a companhia um do outro. Se só um cair, a solidão será dolorosa. Os dois unindo vozes gritarão mais forte por socorro, duas cabeças pensarão melhor e o que falta nos olhos acabarão por desenvolver no tato, na intuição e na amizade que os unirá. Mesmo aí, comunidade é melhor do que solidão.
Onaldo Alves Pereira

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Observa

Observa o vôo rasante de uma ave sobre as águas,
como rabisca a superfície lisa com suas asas,
e como delas caem gotas, como diamantes carregando sóis
vê no pouco que percebe de tudo isso
o toque de Deus n’alma
e da alma em Deus!
Onaldo Alves Pereira

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Repressão

Ao contrário do que acontece, o serviço de repressão aos desatinos de alguns deveria ser objeto de vergonha e dor. Algo semelhante ao pudor e recato usual a quando vamos ao banheiro defecar seria natural também nesse caso. Enquanto defecar é comum e bom sinal do funcionamento do organismo, a repressão policial, por exemplo, denuncia o fracasso de nossas instituições na formação e proteção da pessoa.
Qualquer ato repressivo é o último e desesperado recurso de uma sociedade que não deu conta de si mesma, de doutrinas que fracassaram e de uma humanidade que não evoluiu ainda o suficiente. O policial, ao prender alguém, deveria pedir a essa pessoa perdão pelo que faz. O juiz que condena, deveria também punir a sua própria instituição. Esse serviço, pelo bem do mundo, deve ter como objetivo maior o seu próprio fim. Ele deveria ser, talvez, a única coisa considerada “pornográfica” na sociedade.
Por isso mesmo, por ser tão desnatural e vergonhoso, esse serviço só deveria ser prestado por profissionais altamente qualificados e com equilíbrio emocional e muita paixão pelo mundo.
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Deus e o deus da teologia

Para a teologia predominante, Deus é mais uma ameaça que uma segurança.
Esse “Deus” nos segura com mãos ensaboadas, delas escorregamos, se nos mexemos.
Deus “ama” odiando; ama o pecador, mas odeia o pecado, por isso, nunca está totalmente unido à sua criação.
Deus cria para perder, pois, sabendo da suposta “queda” de sua criação (no caso, o ser humano – (antropocentrismo) ainda assim, prossegue como se tomado por uma obsessão sadomasoquista.
Esse Deus é o fracasso embutido em tudo o que toca, é o destino fatídico de sua criação, é, conseqüentemente, o próprio mal.
O Deus verdadeiro é absoluto em sua bondade.
Deus segura tudo o que cria como a si mesmo, em si mesmo. Perder algo equivaleria a perder-se o que é, de fato, uma impossibilidade.
Deus permite contradições e paradoxos em sua ação cósmica, ao conceder espaço para a liberdade dos seres, um exercício de estabelecimento de relação com o que cria.
Isso pode até, num determinado momento, dar uma aparência de afastamento e, mesmo, de abandono por parte de Deus, o que, de fato, é apenas uma ilusão, pois, se a corrente cai numa cascata Deus vai junto; se a poeira se eleva e se dispersa no ar, nela, no ar e no chão Deus está; se a consciência se perde num emaranhado de dúvidas, na dúvida e na consciência está Deus. Deus no gozo, na dor, na causa e na conseqüência, na inconseqüência também. Deus no perpetrador e na vítima, na fome e na saciedade e, ainda, na indiferença. Deus na sociedade que brota e na que apodrece, no pensamento que prepara como no que aborta. Deus sempre indefinível, por ser interior. Como é difícil ver-se a si mesmo assim também o é ver a Deus. Aquilo que está dentro do olho, que é o pensamento e não apenas o seu conteúdo, que também se desdobra na visão e no pensamento, Deus. Deus é Deus por isso mesmo é Deus e é...
Absoluto em sua bondade, senão não seria! Isso sabemos com certeza.
Deus é o mapa que, interior às águas, guia-as rumo ao Oceano não obstante os caminhos que toma.
Deus é o tesão que leva ao encontro, que fertiliza a vida, que diz a ela para individualizar-se.
Deus é o absurdo da completa segurança e o sentido de tudo.
Onaldo Alves Pereira

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

“Pare de sofrer”

Vê-se por aí anúncios do tipo: “Quer libertar-se das drogas, e das doenças etc procure-nos!” “Está desempregado, com problemas familiares, deprimido? Nós temos a solução!” Aí oferecem o telefone, o endereço, programas de rádio e TV etc.
Mas não se vê:
“Você está desempregado, com fome, desabrigado?! Nós temos a solução, oferecemos emprego, casa e comida. Procure-nos.”
As igrejas oferecem o abstrato o que, ao contrário de lhes custar algo, rende-lhes fortunas. É mais fácil e cômodo. Se Deus proverá, seus seguidores estão eximidos de fazê-lo!
Essa é uma anti-religião, a que oferece um produto no qual não vai junto, inteira, uma propaganda enganosa, negação da vida.
Onaldo Alves Pereira

A minha fonte

Sou da fonte o motivo, ela jorra para mim
Sabe, a fonte, minhas entradas
E, delas, o mapa traz em si

Da vida, caudal imenso
Solta de si a fonte
Em sabores, cores, odores
Na visão interior ao ser
Profusão de muito mais
Que tem para dar de si, a fonte

Ela só é fonte por mim
Seca se não sou dela todo
Finda vazia, embora cheia
Se não quero dela sempre mais.
Onaldo Alves Pereira

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Grupismo

Prega-se o grupo como obrigação social. Não pertencer a um grupo, igreja, partido, clube, galera etc. significa alienação. Essa ditadura do grupo, primeiro falsifica esses ajuntamentos, tirando deles o cimento da genuína convicção. Depois, banaliza o indivíduo ao desconfiar de suas escolhas não grupais. Isso vai ao ponto de alguém tornar-se suspeito de algo ruim só por não ser de algum grupo. Ele não se mistura! Ela é esquisita, sempre só, dizem, como prova sinistra de algum desvio.
O grupo, quando voluntário, convencido e aberto para entradas e saídas, sem maiores traumas, é bom e alavanca o bem da sociedade.
O indivíduo que não se filia também é normal e bom, sendo a seu modo, um elemento de equilíbrio e manutenção do direito à individualidade, sem coação ou proselitismo.
Claro que, o proselitismo, quando dialogante e, sobretudo, inteligente e bem informado, também é bom.
O ideal é que a decisão de estar ou não dentro de um grupo seja absolutamente livre e, nunca, definidora da qualidade da pessoa.
Onaldo Alves Pereira

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Dos lábios de Deus

Dos lábios de Deus
Pendem frutas maduras
Dos lábios de Deus
Mina mel, que doçura

O convite é feito
De gentil sedução
Frutas maduras
E mel coração

A beijar esses lábios
A vida se adoça
Nos lábios de Deus
Refinado sabor

Quem sabe, bem sabe
Deus se faz em sabor
Pra ganhar nosso amor.

Onaldo Alves Pereira

quarta-feira, 15 de julho de 2009

A maior autoridade

Um ser humano traz em si a dignidade de toda a humanidade. Num indivíduo está a plenitude de seu meio.
As constituições dos países democráticos reconhecem o fato de que toda a autoridade emana do povo e por ele será exercida, portanto, a maior autoridade é o indivíduo que, somado a outros indivíduos, faz o povo. Um povo só é construído quando realiza na diversidade a sua unidade. Como o conceito de povo se assenta no alicerce do indivíduo, esse é o povo de fato e, uma sociedade nunca se definirá por sua maioria numérica (de votantes, opinião, religião, moral etc), mas pela pessoa singular que tem valor absoluto e, é o resultado de todas as somas.
Daí, não é da função investida numa pessoa ou num serviço específico, que vem a autoridade ou o poder maior. A maior autoridade é sempre o indivíduo comum, despido de títulos, de cargos ou de funções, este é o chefe absoluto, o poder em pessoa.
É profundamente equivocada a idéia desumanizante de que o funcionário público, seja ele o presidente da República, seja o policial da esquina, é a autoridade maior. Esses exercem, sim, um trabalho comissionado pelo povo, seu chefe, para servir-lhe. A autoridade, nesse caso, é funcional e está no exercício do serviço, e não na pessoa ou no título que ostenta seu cargo. Desempenhando bem a função que recebeu, merece o respeito dos que lhe mandaram fazer isso e lhe estão pagando para tal. Seja ele o juiz de direito ou o varredor de rua, ambos têm autoridade na mesma medida, sendo o que desempenhar melhor a sua tarefa mais digno de sua paga e de louvor. Mesmo esses, são chefes de si mesmos, pois, como pessoas, são maiores que as funções que exercem.
Quando entendermos bem isso e o colocarmos em prática os maiores problemas do mundo serão resolvidos e acabarão as guerras – que são, na verdade, brigas de “autoridades”.
Onaldo Alves Pereira

Sensibilidades

É bom criar novas sensibilidades.
Saber ver o doutra forma imperceptível.
Dar palco ao artista, parar para ver a cena de rua.
Ouvir histórias puxando detalhes.
Saborear o prato da hora, querendo conhecer seus ingredientes e quem os preparou, desde o chão.
A cada passo, levar espertos e alertas todos os sentidos.
Isso possibilita viver de forma mais inteira e gostosa, a nossa e, a vida dos outros.
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 30 de junho de 2009

Beleza!

A beleza está nos olhos de quem vê. Mais do que isso, está na sua alma, que, por sua vez, produz os pensamentos, as palavras e as ações que podem criar Beleza.
Beleza é sinônimo de bem estar. Ela vai além da superfície sujeita ao trabalho do tempo, ela se eterniza nos feitos que superam as circunstâncias e nunca é propriedade de um ser só.
A beleza das flores que duram apenas dois dias, mas que não morrem, pois sobrevivem no néctar que fornecem às abelhas e nos frutos que alimentam os humanos, os pássaros e os vermes. A beleza continua depois que a aparência muda. Ela, de fato, se multiplica ao se tornar alimento. Essa oferta de si é o segredo da beleza eterna. A vida aponta-nos esse segredo em nós mesmos e nos convida à abertura irrestrita e à alegre doação!
Onaldo Alves Pereira

E viva o Michael Jacson!

Escrevi, no calor da reação aos exageros que vi ao meu redor (até um rapaz espancado por dizer que não curtia o pop star), um texto sobre a morte do Michael Jacson que me rendeu um punhado de respostas, também nervosas. Arrependi-me amargamente de ter expressado tão abruptamente a minha opinião. Entre as respostas, uma pessoa querida dizendo que não fala mais comigo e uma meia-ameaça de punição exemplar.
Eu sempre tive dificuldades com tudo o que eleva demais, as glórias que tiram os pés do chão e, sobretudo, a manipulação midiática do assunto. Enquanto outros assuntos tão ou mais apaixonantes e urgentes como a eliminação (Onaldo, cuidado com o exagero. Resolução, talvez seja melhor que eliminação) da miséria, da violência e da ignorância não recebem nem uma resposta mediana das pessoas. Tenho a impressão de que o entusiasmo é insuflado pela mídia seletivamente, enquanto ela nos dá a impressão de que “apenas” noticia.
Mas está bem, tem muita gente que gosta do Michel Jackson, especialmente morto, é claro, porque quando ele estava caindo de moda, recluso e sofrendo um de seus muitos sofrimentos, a venda de seus discos caiu vertiginosamente e não houve uma corrente mundial de “pra cima Michel”. A mesma multidão que adora é antropófaga e vampira, quando o ídolo dá errado o espetáculo da queda é saboreado com imenso prazer. Vemos isso no futebol, na música e no cinema. A morte às vezes redime e reverte a onda, mas nem sempre, não são poucos os astros que morreram no anonimato, esquecidos e pobres. Só um para exemplo: o Garrincha. Depois, surgindo um biógrafo e um bom editor, a coisa muda, de novo o prato da desgraça é servido quente e bem temperado e, não faltam os com bom apetite.
Bem, eu na verdade, sinto um grande espanto diante de tudo isso. Mais um aspecto complexo e misterioso de nossa sublime humanidade.
Não tenho a pretensão de entender o que se dá e nem opinião formada a respeito, apesar do que escrevo. Para quem não sabe, muito do que escrevo é plástico, indagador e, às vezes um transbordar do que me inunda o espírito na hora.
Que o Michel Jackson seja adorado e entronizado! O que ele produziu é considerado genial por muita gente e isso basta!
Quem não se entusiasma na mesma linha, fica espiando e escrevendo linhas desatinadas. Diz a amiga que não quer mais prosa comigo e a quem continuo chamando de amiga, que eu sou é um baita de um invejoso. Bem pode ser. Afinal, tudo pode ser.
Queria era ver esse fogo poderoso mexendo com os brios de todos diante das mazelas que os nossos políticos, a nossa custa, mal administram e até pioram. Não, não sou um revolucionário, longe de mim, mas acho que temos instrumentos racionais para lidarmos com essas coisas, basta que nos despertemos tanto para a feiúra do que predomina, como para a beleza do que poderia ser!
E viva o Michael Jacson!
Onaldo Alves Pereira
Michael Jackson morreu e virou assunto obrigatório, saturando os meio de comunicação e a conversa geral.
Eu não consigo entender o alvoroço. Pelo que eu saiba, o cantor pop era humano e, conseqüentemente, mortal. A sua música faz sucesso e é do gosto das massas, o que é sintoma de qualidade duvidosa. Para alguns, eu incluso, essa música não passa de uma desagradável poluição sonora e visual.
A comoção é meio forçação de barra. A maioria dos entrevistados, nos programas de TV a que assisti, ao se dizerem “arrasados” com a morte do cantor, soou teatralmente improvisada, falsa. E não podia ser diferente, faltam razões para que sejam sinceros.
Isso é daquelas coisas que se criam artificialmente para que vendam bem e, a maioria entra na onda porque seria politicamente incorreto diferir. Duvido que a mídia publique opiniões como a minha!
Morreu uma pessoa como morrem milhares. Os de perto, amigos e parentes, genuinamente sofrem. O resto lamenta a morte da figura mitológica, à moda dos rebanhos, sem saber o que faz. É mais impressionante a encenação coletiva – o que não é encenado é pior ainda – do que a morte de um cantor famoso, não obstante os obstantes.
Onaldo Alves Pereira

Algumas tragédias são feitas mais tragédias do que as outras

Algumas tragédias são feitas mais tragédias do que as outras, dependendo do grau de teatralidade em potencial e, sobretudo, do meio social que atinge. A queda de um avião, por exemplo, custa caro, as buscas nunca terminam, querem saber o motivo do acidente e os desdobramentos são infinitos. Tudo coberto neuroticamente e à exaustão pela mídia.
Uma inundação no Nordeste dá uma manchete impactante, mas logo sai da mídia e não gera buscas por responsáveis e nem pedidos milionários de indenização.
Acidente de ônibus, com dezenas de morte, idem. Já notou que ônibus não tem caixa-preta?!
E as tragédias vivas e devoradoras em andamento: a pobreza, os milhares de mortes violentas, a ignorância e o fanatismo?
Mal conseguem uma linha cansada no noticiário e, nunca se ouve dizer de se responsabilizar os responsáveis – no caso o estado – e nem de indenizações - que deveriam ser milionárias...
E as caixas-pretas dos governos, onde estariam?!
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 23 de junho de 2009

Obrigações

Nascemos e morremos sob obrigações. Leis, regras, ritos, expectativas, metas, sonhos etc que formam o molde para onde somos empurrados todos os dias. Até amar, o mais sublime dos sentimentos, virou mandamento.
Claro que fracassamos e então, nos oferecem os remédios, também reguladores. Dos livros de auto-ajuda aprendemos que temos que relaxar, ousar, desapegar, meditar e assim por diante. As religiões oferecem seus ritos, correntes, orações e, sem falta os dízimos. O Estado nos quer consumindo e pagando impostos. Aí caímos no consumismo e temos que recorrer a regras que nos ajudem a simplificar a vida. Nos relacionamentos as demandas também são altas e exigentes. Será que sobra tempo e energia para simplesmente sermos?! Será que vivemos ou passamos a nossa existência nas obrigações?
Como humanos sofremos, gozamos, nos atrapalhamos, erramos e acertamos. É isso mesmo, nada fora do comum. Seria bom que essa naturalidade nos ajudasse a nos desembaraçarmos das teias dos deveres, das obrigações e dos mandamentos. No fim, com obrigações ou não seremos o que somos. As obrigações apenas nos roubam o prazer de sermos o que podemos ser sem pressões ou cobranças. No fim, o bem que fazemos fica sendo porque “tínhamos que fazer”! Um fiasco!
Imagina, quanto mais surpreendente e delicioso é amar e ser amado sem para isso termos sobre nós um mandamento obrigando.
Talvez não dê para amar todo mundo o que nem é mesmo possível ou necessário, mas amaremos genuinamente e com qualidade!
Onaldo Alves Pereira

sábado, 13 de junho de 2009

Devagar

Pára. Muda o ritmo e reorganiza o tempo. Desacelera e aproveita cada detalhe do caminho. Abra os olhos devagarzinho para que não se machuquem com a luz. Tenha paciência, aprenda a esperar. Senta e relaxa.
O sol não se apressa, tem hora marcada, não corre nem se afoba.

Presta atenção e aprenda com os estragos que a pressa fez no mundo e nas pessoas.
Em cada passo coloca o pé inteiro no chão.
Quem vai devagar leva completo o vaso da bênção, quem se apressa quebra a coluna vertebral.
Contando estrelas.
Espiando a rua.
Ouvindo a chuva.
Fazendo retratos.
Onaldo Alves Pereira

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Dança

Dança
Com todos os seus pertences em duas sacolas de plástico, a velha aproxima-se do círculo dos músicos peruanos já fazendo passos de dança. Entra no meio e dança bem, com ritmo e leveza.

“Guantanamera” é a música, o local o Passeio Público em frente ao Casablanca, cine pornô em Fortaleza.

Ela pára diante do cartaz anunciando um filme de sexo explícito, lê o título com boca sem dentes e prossegue alegre na dança.
Ora, quantos de nós podemos dançar na rua com tudo o que temos no mundo, ali, em nossas mãos?!
A velha roubou o show e fez outro melhor, profundamente espiritual e libertador.
Tudo que temos nas mãos, tão leve que não atrapalha a dança, na rua mesmo.

Onaldo Alves Pereira

segunda-feira, 25 de maio de 2009

- Tá, dizia a mulher, e emendava a prosa com tanto verbo quanto lhe fornecesse o miolo. Falava que nem a boca, havendo ouvinte ou não, era dela a palavra, esse comichão misterioso. Se faltava assunto repetia antigos, que arquivos tinha de montão.
Tá, era a tesoura com que cortava o dizer de qualquer um. Nada lhe interessava mais que a própria opinião. Se não sabia algo verbalizava os próprios questionamentos ao infinito. Perguntava, mas não esperava nenhuma resposta. Ela odiava televisão porque não dava espaço à sua conversa. Novela e filme até que ia, ela enfiava na trama o seu papel. Dizia o que os protagonistas deviam ter dito, feito ou, explicava a quem estivesse por perto o que acontecia na tela.
Nunca atinava, a Dona, que alguém pudesse entender qualquer cena sem a sua demão. Achava-se generosa por estar disposta a esclarecer os motivos ocultos do galã, os sentimentos da mocinha e os possíveis desdobramentos do enredo. Com música era a mesma coisa, explicava a letra, contava a vida de quem cantava e fazia a sua crítica, nem sempre favorável. A tudo podia acrescentar seus reparos.
Ir ao médico era outro acontecimento. Gostava dos que faziam perguntas, curtas, óbvio. Detestava os que queriam explicar a situação. Com um “tá” enfático ela cortava o doutor e partia para expor o seu diagnóstico, sempre mais prolixo e detalhado.
Converteu-se a crente, mas logo desviou-se do aprisco. Não dava conta de ouvir sermão sem dizer nada, sem corrigir o pobre pastor. Fazia isso baixinho para quem estivesse por perto. Acabou exorcizada um bom punhado de vezes. Só podia ser demônio, aquele descontrole.
Resolveu assumir seus exus e foi para um terreiro. Lá também não deu certo, levou pito dos dirigentes, colocaram-lhe um ebó e ela descrençou. Voltou ao catolicismo, passou a freqüentar uma paróquia grande onde era comum um zunzunzum durante a missa e lá fez-se em casa. Além disso, descobriu a confissão, maravilhoso sacramento e, doravante, esmerou-se com empenho a pecar e quando não tinha estoque suficiente de pecado, inventava e, depois, confessava que inventara, repetindo detalhadamente cada invenção e o remorso que sentia por ter ficcionado em tão séria situação. Não elegeu um confessor, preferia ouvidos virgens e capazes de surpreender-se diante de sua capacidade de falar.
Só lhe assustava uma coisa, que a morte lhe tirasse a voz. Ainda bem que não faltavam médiuns
!

Onaldo Alves Pereira

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Receber

Julgamos, erroneamente, que só recebemos o bem de quem seja virtuoso, de acordo com nossos padrões de virtude.
Não há ser que não tenha algum bem a nos comunicar e, de fato, um do qual jamais poderíamos prescindir, por pouca importância que lhe imputemos.

Cabe, então, que sejamos sempre receptivos, aproximando-nos uns dos outros numa atitude de vasilha, receptora do que, no outro nos completa.
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 19 de maio de 2009

Alado verme

Existe em cada ser o desejo de ser o que não é em si, porque já o é no-a outro-a. Daí, o dizer-se que em cada verme existe o ser alado. Isso revela um inconformismo preconceituoso. E, quem disse que o ser alado é superior ao verme. Ou não estarão ambos dentro daquilo para que foram chamados e, portanto, perfeitos nisso? Ou seria o nosso juiz máximo aquilo que fascina os olhos? Asas nos atraem poderosamente porque não as temos, porque elas permitem ganhar as alturas e temos mania por alturas.
Onaldo Alves Pereira

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Fosse eu certo deus

Fosse eu certo deus, “que há tanto tempo manda e desmanda sem muita contestação”, faria diferente o mito que me apresenta ao mundo. Não criaria o homem e, só depois, para o seu desfrute, como coadjuvante, a mulher. Não ficaria puto da vida quando esse distinto casal, num ato de curiosidade sadia, comesse do fruto que capciosamente lhes proibira. Pelo contrário, veria nesse ato de pesquisa experimental um sinal de que havia criado bem. Não entraria nessa aventura sádica de expulsão, maldição, morte, etc. Afinal, sendo deus, esse destempero não me cairia nada bem. Não deixaria a coisa degringolar a tal ponto que tivesse que arrepender-me de haver criado a humanidade e, não conseguindo controlar-me, afogasse-a num dilúvio. Principalmente, não estenderia, por tabela, a minha ira aos outros seres, matando todo mundo. Aliás, sendo todo-poderoso, amor, justiça e companhia, mudaria a cabeça desse povo e pronto.
Minha nossa, principalmente me absteria de requerer e aceitar com alegria o sacrifício de animais não humanos, pelos pecados dos humanos. Tanto sangue, tanta dor... No caso da curiosidade, sempre esse maldito impulso evolutivo, de Cão, que viu e divulgou a nudez do pai bêbado, não o amaldiçoaria. Bobagem, essa coisa de cobrir corpos, de punir a sua beleza e exibir seus ossos descarnados. Cada neura!!
Ainda, o problema do progresso. Babel, um empreendimento filosófico-religioso-arquitetônico-urbanístico muito interessante, seria do meu agrado! Chegando às alturas descobririam que não estou precisamente no céu, mas na mente inquiridora e criativa que inventou Babel. Não ficaria nem um tico chateado (aliás, deuses não se chateiam) que quisessem ser igual a mim, encontrar-me (não é isso que desejo de todos?). Afinal, sou ou não um ser bom e, não é desejável querer igualar-se ao bom?! Nesse item é inevitável colocar a tal história de Lúcifer, outra “vítima” de uma obra “malfeita” (se não, não daria errado) e, punida por querer ser igual a deus!
Sim, jamais levaria o fetiche sadomasoquista ao ponto de sacrificar-me para salvar (de mim mesmo, de minha falta de gerenciamento e péssimo conhecimento genético) uma humanidade que fiz sem saber o que estava fazendo. No caso, esperaria um pouco, estudaria mais e só criaria quando tivesse a segurança do que fazer. Sendo deus, nem precisaria disso, e nem seria dominado por pulsões que nem Freud explica. Não chamaria um povo entre as nações para ser meu, criando um caldo explosivo de que se alimentariam racismos, conflitos religiosos e guerras sem fim. Não permitiria um livro onde, em meu nome, são sancionadas leis e regras que discriminam e matam, de dentro para fora: mulheres, gentios, portadores de deficiência e de certas doenças, os de outras crenças ou descrentes, os gays e lésbicas, os escravizados (com a sanção de deus), os pobres etc.
Enfim, renunciaria à minha deidade com todo o estardalhaço possível, se continuassem a atribuir-me esses mitos monstruosos, frutos de uma imaginação desequilibrada. O pior é que a loucura sempre exerceu um fascínio (nem sempre ruim, pois pode criar histórias divertidas) irresistível. Mesmo assim, desceria do “trono” que me impuseram e desabrocharia como uma macia e perfumada flor na mente de todos os seres.
Se eu fosse esse tal deus tornar-me-ia Deus!
Onaldo Alves Pereira

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quinta-feira, 7 de maio de 2009

Crença que droga

Com a multiplicação das igrejas que prometem prosperidade, principalmente nos setores mais desvalidos da sociedade, teríamos que estar assistindo a um boom econômico no Brasil. Fossem todas as promessas de cura e os testemunhos de milagres confirmados, teríamos hospitais e clínicas às moscas e agentes funerários falindo às centenas.
Crer em tal disparate, à revelia dos olhos e das evidências gritantes é uma opção tão “viagem” quanto a de dar uma puxada num cachimbo de crack. Esse crer é uma droga que anestesia, a um preço tão alto ou mais, quanto o do tráfico, e aliena uma parcela significativa da população. O pior , é que do tráfico se pode e, até, se deve falar mal, dessa “droga mágica” é politicamente incorreto dizer o que seja de negativo.
Pobre humanidade, que não dá conta de viver sem engano.
Enganar-se com arte e beleza até que pode ser, é da natureza do mundo. Inventar enganos que levem à escravidão psicológica custosa, é estúpido!
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 5 de maio de 2009

Regalo do bom

Regalo do bom é saber-se permeável, aberto a novidades como também a coisas velhas. Ser capaz de emocionar-se, de chorar solto, sem economia de lágrimas. Cair no riso escancarado, deixar-se levar na gargalhada. Enternecer-se com os detalhes de uma fachada e perder a hora por conta disso. Apaixonar-se pelo rostinho inocente de um recém-nascido, de uma criança, um gatinho, um bezerro... Cheirar, com mais que o nariz, a flor, o frasco de perfume aberto, a batata assando, o cangote tesudo. Morder a fruta percebendo a sua textura, sorver seu suco a pequenos goles, parar para sentir cada detalhe.
Regalo melhor ainda é o aquietar-se interiormente, deixar-se ir, soltar as pontas e perder as bordas, esparramar-se para além de si e descobrir-se em tudo.
O mais, contudo, é não precisar dizer nada, não ter que explicar, ou ser. Amar, quando e do tanto que der. Viver!
Onaldo Alves Pereira

sábado, 2 de maio de 2009

Prosa Caipira

Ele pegava um punhado de arroz com casca entre as duas mãos e, num movimento de vai-e-vem, primeiro pressionando, depois aliviando e, de quando em quando, soprando a casca que se soltara, avaliava a qualidade do arroz. Meia dúzia de grãos quebrados, alguns grãos transformados em quirela.
– É bom o arroz, sentenciava no fim da operação.
Tinha as mãos calejadas, ásperas, tanto que rangiam ao limpar o arroz.
Arrancava uma casquinha mais seca do rolo de fumo, cheirava e punha a secar na chapa do fogão à lenha.
Entrementes, a prosa. Tudo num ritmo de dança encantada, lenta e suave, com cada movimento fazendo sentido.
Transformava em pó o fumo e o aspirava a pitadas, rápida e ruidosamente. Oferecia aos outros, o pó. Espirro e risadas abafadas pelo pudor natural. Continuava a prosa até ser vencida pelo sono.
Onaldo Alves Pereira

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Buscar a Deus

Buscar a Deus é como cair em um abismo, é sentir-se indo descontroladamente rumo ao desconhecido. O raciocínio, como ajuda, deixa de existir; a nossa força é completamente anulada; a queda é livre, o fundo não existe. A possibilidade de interrupção de esse cair inexiste. O caminho destrói todas as funções de nosso ser. Quando paramos de lutar, quando nos entregamos ao fato e nos deixamos carregar, tornando-nos a própria queda e o abismo, aí chegamos e conhecemos a paz. A entrega tem que ser radicalmente total.
As emoções e os sentimentos são engolidos pela impossibilidade de serem. Desejar, querer e sonhar são vomitados pela sua própria inutilidade.
A paz de se ter chegado não pode ser descrita, pois só pertence, seu entendimento e prova, a quem chegou e esses não podem falar, o silêncio do próprio silêncio é o único movimento de tais seres – todos os seres, um dia.
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 21 de abril de 2009

Toma e come



- Toma e come, este é o meu corpo; diz a mãe, achegando a boca da criança ao seu seio.
Essa é a mais graciosa das eucaristias. Essa é a única autoridade cabível no Universo!
Onaldo Alves Pereira

segunda-feira, 20 de abril de 2009

E se

E se a voz dos profetas nada mais é que a voz de atores?
E se os grandes dramas míticos da humanidade nada mais são que peças de um bom teatro?
E se os avataras, papéis desempenhados por bons artistas?
E se as visões grandiosas dos santos, delírios de mentes apaixonadas?
E as promessas, arroubos de corações generosos?
Perderemos a fé? Desacreditaremos do Caminho? Renegaremos a revelação? Claro que não, pelo contrário, robustecida fica a nossa alegria por ser o ser humano tão ligado ao Divino que, fazendo de conta, fala a Palavra de Deus, revela o Seu rosto e realiza todos os sonhos sagrados! Que, de fingir, faz de conta que é o que deveras é e sempre foi. Esse fingir, de fato desfinge, pois, pretender não Ser é que seria fingir.
O mundo todo está encoberto por uma capa, por um fingimento doído e, dele derivam todas as dores, todos os sofreres. É de se fazer de conta que não somos em Deus e, de Deus, face e coração, que perdemos o rumo.
Olhamos os rostos uns dos outros através de uma poeira, às vezes fina e, então, chegamos a quase adivinhar a Verdade que é neles, noutras vezes, é tão densa a poeira que mal conseguimos reconhecer naquela pessoa um pouco que seja da Verdade e, aí, desatam-se os nós que nos seguram e acontecem as grandes tragédias.
O Espírito de Deus sopra essa poeira e restaura a Verdade, mostra o rosto de Deus nos rostos e, neles, a Alegria da Presença.
Onaldo Alves Pereira

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Cara feia


Cara feia
Aprendemos a dar autoridade à cara feia e à tristeza. Precisamos aprender a conferir maior autoridade ainda ao riso e à alegria!

Onaldo Alves Pereira

Borboletas

Borboletas no casulo
livres em teias tão leves
transformadas no virar do dia
em si mesmas, com asas eternas.

Onaldo Alves Pereira

A lavagem da santa

- Não há de ver que ela teve a tamanha capacidade de lavar a santa na data errada! Uma barbaridade. Quem faz um absurdo desses, arrenega a Cristo e faz maligna a própria alma. Curuiscredo, Ave Maria, que desespero de causa, cair numa danação dessas.
O velho tingia o pano no tacho e soltava o verbo, a cada início de frase metia com mais força a vara no tecido e, segurando o cotovelo direito com a mão esquerda, dava uma revirada nele.
- Maria, me diga, que diacho tava no seu coro, mulher, pra fazer uma danura dessas?
- Ora Zico, que a santa tava suja de poeira, mal dava pra ver seu vulto, tadinha dela.
- Mais só no dia certo, se não, desanda tudo, como tá acontecendo; o sabão não deu ponto, os ovo da galinha amarela chocou, ocê tá perrengue e, eu, aperriado da gota.
- Ora sô, que vai vê foi mais a sujeira da santa que provocou tudo isso, ocê faiz umas promessa atravessada de só lavá ela de ano em ano, vai ela castiga, que nem santo tolera imundíça.
- Num me irrita sua herege, gemeu o velho levantando o pau e metendo-o com toda a força no tacho. As pedras que faziam a fornalha arredaram, o tacho esborrachou-se no fogo e foi água tingida, brasa, cinza e pano pra todo lado.
Os dois receberam, cada um, os machucados cabidos no caso e, a culpa de todas as desgraças ficou com a velha, que queria limpa a santa.
Desde essa data construiu-se uma capela para a santa e, todo ano, na data certa, a vizinhança de perto e de longe, fazia novena e lavava a imagem milagrosa, que havia castigado o casal desobediente com queimaduras, ossos partidos e muita dor.
É assim que Deus exempla as suas criaturas, para que não se desviem da devoção correta, todos agora sabem!
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 14 de abril de 2009

O amor que liberta


O que o amor permite é legítimo. O que o amor não provoca não vale a pena. Só os limites impostos pelo amor são lícitos. Só a liberdade concedida pelo amor de fato liberta. Qualquer poder que não o do amor trabalha contra a vida.
Onaldo Alves Pereira

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Nenhum poder a não ser a ternura.
Só a carícia para alisar superfícies ásperas!
Onaldo Alves Pereira

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Costura-me

Costura-me com linhas de amor, coloridas linhas de amor
Desenha-me com traços de amor, coloridos traços de amor!
Pensa-me com pensares de amor
bonitos pensares de amor!
Sente-me com sentidos de amor
bonitos sentidos de amor!

E eu serei, então, de Deus
Seu rosto no mundo a sorrir
sorrisos de terno e belo amor!
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 7 de abril de 2009

Velório Atrapalhado

“Moreninha linda do meu bem querer...” O rádio Brastemp novinho cantava contido, não o deixavam soltar, como queria a modinha apaixonada que as ondas lhe metiam dentro. A moça, também chateada, amaldiçoava o defunto marido da vizinha, causa dessa moderação forçada. Mas, a cada pensamento mau, puxava uma Ave Maria em intenção da alma do Nego da Zica, o que lhe acabava atrapalhando ainda mais. Tinha medo de ele lhe aparecer, em castigo ao desrespeito cometido. A coitada nunca estivera tão embaralhada e confusa, a moda bonita, as rezas, o medo, a raiva, tudo fervendo nela.
O vendeiro também balbuciava Ave Marias e Padre Nossos, enquanto entre um calafrio e outro, somava satisfeito o que ganhara vendendo pinga para o velório do amigo. Só ficava de plantão quando tinha festa ou morria gente, no último caso deixava só uma porta aberta e uma lamparina acesa, como se estivesse já fechando; senão pegava mal e o povo podia falar mais do que de costume. Quando morria quem era apenas conhecido era fácil, mas, vizinho de rua e ainda por cima amigo, aí a coisa apertava. O vendeiro tinha medo de assombração e mesmo que em velório todo mundo bebesse alguém tivesse que fornecer a cachaça; o negócio era mal visto e tinha gosto de pecado. Muitos dos finados, nas mortes dos quais faturava, tinham aparecido pra ele, pedindo reza, fazendo ameaças ou só assustando. O proibido atrai, apesar das conseqüências, o vendeiro fazia o seu negócio como quem tira moça de família, com prazer doído.
A conversa na cozinha saía de um abafado gemido para um tom de festa. Tunica fazia precata na frigideira, Geroma coava café fresco e dois tipos de prosa cruzavam-se desentendidas.
- O coitadim morreu de congestã, cumeu gabiroba e bebeu leite; tão novim, muié e fio pra criá.
- Isso é assim mesmo sô, o Tota era tão machu agora tá tão machucado; ele e a muié precisa é de sova, sô.
- Cê viu o difunto? Parece que tá druminu, tão bunitinho.
- A tia do morto vai intorná loguim, num choro de dó do subrim, chora de bêba, vai vê que é a marafa que tá vazano pelos os zói dela.
Na sala o morto esticado no banco de peroba, com o paletó de casimira do casamento e os tornozelos amarrados com a embira que sobrou da amarração de pamonha de ontem. Ninguém sabe mas, além da gabiroba e do leite o bucho do danado tivera que lidar também com umas três pamonhas de sal, com pequi.
A velha Maria Preta pendurou o rosário no pescoço, lambeu os beiços e saiu puxada pelo cheiro de pamonha quentada na chapa. Agora era o defunto; com o queixo amarrado ao crânio por um lenço branco, e o Pedroca, um aleijadinho, vítima de constipação. Ele saiu da queimada de corvara na roça e puxou no poço do córrego da Anta, não andou mais.
Pedroca revoltado pensou que deviam tê-lo deixado pelo menos sentado num ângulo diferente, mas não, estava de cara para o morto, vendo-o de cheio. Suores frios e Ave Marias escorreram do aleijado, ambos pelo finado, que com essa ganhava mais rezas, sentidos, mastigadas, cuspidas mas, em sua intenção.
Da cozinha ouvia-se cada vez mais prosas esquecidas do morto, ligadas aos vapores de pinga e à lama comum, amassada todos os dias pelas línguas das comadre e compadres da vila.
- Ele tá inrrabichado da subrinha cumpade...
- Cê é que fala que nem uma tramela muié...
- Tome tenência sô, num minstura quêis que te avisei...
A Zulmira chegou na porta, olhou pra lua e disse:
- Óia que tem uma estrela perto da lua, no circo dela, é outra morte!
A embira podre quebrou, o defunto abriu as pernas sentou-se no banco, Pedroca ficou no mesmo instante curado e correu pra cozinha gritando que o morto revivera, a Zulmira olhou da porta viu o fato, segurou o pescoço e despencou no meio de um vômito azul.
- A Zulmira lançô, ela tá tenu uma sapituca.
- A veia feis foi batê as bota memo.
- Curuis credo, Virge Maria, qui noiti grandi sô.
Quem ainda não estava bêbado demais para fugir correu, na frente o Pedroca. Um pouco de gente entrou na venda e afogou o susto na caninha Tatu, outro grupo foi vagando rua acima e os mais corajosos voltaram e descobriram a marmota da situação.
A moça cobriu a cabeça com o cobertor, puxou o rádio pra junto do ouvido, esconjurou a gritaria do velório, “o povo ficou bêbado antes do amanhecer”, pensou. – Que noite grande essa; falou, sungando o volume do rádio – “Baile na roça meu bem se dança assim...” Cantavam indiferente Tonico e Tinoco; que a noite era grande!
Onaldo Alves Pereira

Malemal

Malemal equilibrado, aquele arranjo de cores, ia ameaçando espalhar-se pelo negro sujo do asfalto.
O carrinho lotado em sua capacidade e mais um milagroso pouco de frutas variadas e de flores algumas, uns pés de alfaces e, o que me interessava no momento, naquele caos, a Folha de São Paulo. Anunciando item por item numa cantinela entrecortada de gemidos e upas e ôpas, aos quase apocalipses do conjunto, a cada bacada, nessa volta ou naquele desvio, o vendedor fazia o seu comércio com sucesso. Comprei dele a Folha de São Paulo, como às vezes faço aos domingos, ao preferir não ter que caminhar até a banca.
Assim começa meu dia. Pretendo pouco dele, ler, prosear com os de casa, escrever, mimar os bichos, assuntar o tempo, puxar uma soneca e, é claro, estou aberto, sempre, a boas surpresas.

Onaldo Alves Pereira
A minha religião é a vida e se manifesta inteira em cada ser. A tradição que uso para manifestá-la simbolicamente é uma peça numa imensa obra de arte. O seu valor só aparece por completo nesse todo. O isolamento só empobrece a parte. Celebro a minha religião na tradição que agrada a minha alma, que afaga meu corpo e enfeita meu espaço.
Onaldo Alves Pereira

Somos


Somos a planta alimentada pela respiração do Amado
Somos o corpo que responde ao toque da Amada
Somos a tela onde o Artista se coloca
Somos a tinta da arte da Pintora
Somos o olhar que seduz
Somos o sono que recebe o Sonho
Somos no Ser que é Mais!
Onaldo A. Pereira

quinta-feira, 26 de março de 2009

Barra de chocolate

Toda vez que a menina levava a barra de chocolate à boca seus olhos esbarravam com a carranca da mulher sentada à sua frente e a sua mão não conseguia alcançar a boca. Sentia como se estivesse fazendo o mais obscuro dos atos, tão eloqüente era a reprimenda vinda daquela cara ensimesmada e adstringente. O sabor do chocolate era a transgressão. Nada mais impuro diziam-lhe aqueles olhos semicerrados, puxando que vinham, de longínquas ancestralidades, a avaliação final e definitiva do ato da menina. “Do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás”, nesse retumbante mandamento os seus olhos ancoravam a longa linha de nãos, nãos e nãos que coibiam a volúpia degradante dos sentidos. E a menina sentia derreter-lhe entre os dedos a barra de chocolate...
Onaldo Alves Pereira

Ordem perfeita

Na ordem perfeita de seus átomos o barro é o que é. A mão do oleiro dá forma ao barro, unindo a vontade do mesmo com a ordem dele, num encontro criador.
Esse encontro da ordem com a vontade cria o mundo, como também o caos.
Na união da liberdade com o sentido está a organização perfeita.
No absoluto que se deixa moldar está a beleza da criação.
Deus faz o barro e chama o oleiro para que o molde em utilidade, beleza e organização.
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 24 de março de 2009

Colo ao caos criador

Deus oferece colo seguro ao caos criador. Nos avanços e retrocessos, Deus ampara os extremos para que nada se perca definitivamente. Toda a matéria continua à disposição das forças dinâmicas, paradoxais e indomadas que agem no Universo.
A criação e a destruição são visões parciais e artificialmente descritas como antagônicas, de um todo que se organiza e desorganiza num mesmo momento, num mesmo ato.
Como achar bondade e alegria nessa dança assimétrica e imperfeita?!
Ora, queremos ver nisso a integridade divina em seu agir criador. A bondade está no alívio de não ter que conviver com um dualismo que pretende separar o inseparável, hierarquizando os seres conforme o conceito de perfeição predominante.
O crocodilo devora o peixe? A serpente pica, injeta seu veneno e mata mesmo o que não pode comer?
Durante uma refeição mastigamos milhões de criaturinhas vivas?
Uma moça bela e rica vive do bom e do melhor e mesmo assim se aborrece?
Tantas contradições e horrores a vida não nos oferece no mesmo espaço onde prosperam o bem e a alegria?!
Tudo está entrelaçado e é parte de algo mais que agora não podemos entender. Algo moralmente indiferente, mas sujeito à nossa intervenção, como o barro à mão do oleiro.

Onaldo Alves Pereira

Pasmaceira

Pasmaceira da mente, gente sem alma, vivendo por força do hábito.
Tudo sempre o mesmo. Nada aberto. A coisa envolvida em si mesma.
Saber incomoda, aprender complica. Melhor o silêncio da ignorância.
Gente pasma de ser quem é o outro, igual a todos. Mesmo assim, acomodada nessa morte vã.
Sair dessa, como? Soltar-se de pensar igual, repetir o falar, ter que o que todos têm que.
Que pode ser diferente, pode. Tire os olhos das medidas exteriores, afine os sentidos para provar por si mesmo e solte a imaginação.
Verá, então, que interessante você há que ser desafio grande para si mesmo. Tanto que, de pasmaceira, há de estar pasmo com a maravilha que é!
Onaldo Alves Pereira

sexta-feira, 20 de março de 2009

Vento tonto

O vento bate nos paredões de pedra
e cai tonto no capim seco
que o sacode e empurra
pra outro rumo.


Onaldo Alves Pereira

A fruta



A fruta mordida entrega–se
mole ao apetite
e seu sumo sobra profuso
pelos cantos da boca.


Onaldo Alves Pereira

quinta-feira, 19 de março de 2009

Fio

Dum fio a outro pendiam panos. Velharias de cores lavadas, rasgos grandes, remendos de tecidos os mais variados. No meio de tudo, uma camisa da mais alva brancura. Salta aos olhos o novo dela, a qualidade do material e do feitio. É, sem dúvida, de primeira.
A mulher, sentada, olhava o arranjo e desfiava uma palha de milho. Fazia uma bucha de palha.
A lida do dia-a-dia era do pouco muito fazer. Pouco na quantidade, muito na ocupação. Do cedo amanhecer até quando o corpo agüentava, estava ocupada a mulher. Cuidava muito dos outros e pouco de si. Tomava conta da casa, de quem passava por ali e das vizinhas em grandes tribulações.
Entravam anos que não saíam, ficavam no seu corpo e devoravam as suas carnes por dentro. Sentia os efeitos desse entupimento mesquinho, pesavam-lhe os membros, esquecia fácil o encadear das tarefas, tinha pontadas nos pés e nas juntas das mãos. Era ainda nova na contagem das eras, mas envelhecia no arremate das pelejas, nos sentimentos arrevesados que atavam nós impossíveis em seu peito.
Fazia, ouvia, agüentava, era a primeira a ter mão nas coisas e a última a retirar o que sobrava de tudo, fosse de festa ou de velório.
Os trapos na linha eram seus e representavam muito bem a sua história, o pouco que dela fora sobrando. Dependurados sem muita ordem, haviam perdido a memória, mas não a linha que os segurava de um nada a outro nada.
Aquela camisa era do defunto que lavara por último. Fazia isso também, de favor. Era parteira, benzedeira e enterradeira.
Onaldo Alves Pereira

Peregrinava em busca de Deus

Por muitos anos, enquanto peregrinava por muitas religiões e filosofias, definia esse processo como uma busca de Deus. Queria descobrir onde Deus pudesse estar mais à vista, menos coberto com as roupagens que lhe emprestamos com nossas crenças. Sempre cheguei de volta a um mesmo endereço, ao ser que vive, a mim mesmo, ao mundo. Desconcertado com essa conclusão, partia de novo, apressadamente, atrás de novas fórmulas, embora desconfiasse, cada vez mais, que eram apenas embalagens que, ao invés de mostrar o conteúdo o escondiam com véus, arcas, doutrinas, dogmas, mistérios etc. A estratégia desse jogo parece ser a da criação de “donos de Deus” ou, pelo menos, de “suas roupas”, de “suas moradias”. Mestres, profetas, gurus, salvadores, avatares: todos deliram, querendo convencer-nos de que precisamos de uma ponte de nós para nós mesmos. Muito poder é construído em cima dessa ilusão.
Deus, fazendo-nos, é a Vida de nossa vida. Ficasse Deus ausente de nosso ser, um milionésimo de segundo que fosse, nos desintegraríamos e nem lembrança nossa restaria. Deus, não importa o nome, a falta de nome ou a descrença, o número ou a veste que lhe emprestamos, é um fato em nós, a própria Vida.
Na minha peregrinação cheguei onde sempre estive. Compreendi que mais do que encontro, comunhão ou coisa que o valha, sou em Deus e, nisso descanso.
Onaldo Alves Pereira

Quão gracioso o caminho que se desdobra em mil para não deixar ninguém de fora!

quarta-feira, 18 de março de 2009

Tristeza

Reconhecemos que no mundo tem muita tristeza. Sentimos em nós mesmos o peso da tristeza.
Como não entristecer-se com as situações trágicas que a ignorância cria no mundo? A fome, a destruição do meio ambiente, a violência, a corrupção etc., tudo como uma mancha feia num tecido lindo, descombinando e chocando.
Há que se proibir a tristeza, tornar vergonhoso o choro, indigno o lamento? Claro que não! A tristeza ajuda a ver o contraste, a perceber que a ignorância não combina com o que todas as pessoas entendem como a verdade do mundo.
E aquelas contradições que estão além das explicações fáceis, as doenças, as separações e as fatalidades? Não nos resta a não ser uma profunda tristeza diante desses fatos.
Deus faz-nos com a capacidade de nos entristecermos, cria-nos seres que choram, da mesma forma que também rimos, alegramo-nos e temos prazer.
Choramos e rimos no colo de Deus. A tristeza que nos abate também nos aconchega nos braços de Deus. A certeza do amor de Deus dá-nos a licença de sermos plenamente humanos, inclusive em nossa tristeza.
Não fique triste! Não chore! Ouvimos isso como ordem, não se permite a expressão da dor como se isso fosse vergonhoso. Pelo contrário, a tristeza é uma expressão genuína e bela da alma humana.
Grandes obras de arte e muitas músicas inspiraram-se na tristeza. O drama e a dor têm ajudado o ser humano a desenvolver a sua sensibilidade e aprofundado a sua busca de Deus.
É importante respeitar a tristeza dos outros seres mesmo sem, às vezes, entender seus motivos. Nesses momentos ouvir, ser ombro amigo e ajudar na possível solução da dificuldade é o nosso papel.
A tristeza espiritual, que vem da solidão, que tem raízes profundas e misteriosas é parte da vida de todas as pessoas. Aceitá-la como experiência humana comum já ajuda muito.
Curtir, contudo, a tristeza, como estado permanente de espírito é uma doença e carece de tratamento. Precisamos, também nisso, buscar um equilíbrio.
Finda essa nossa jornada, quando tivermos aprendido a lição e avançado para outro nível, a tristeza será apenas lembrança. Que essa lembrança seja preservada em arte, música e poesia.
Aceitar a tristeza significa também ser capaz de superá-la. Quem melhor aceita uma situação, melhor pode resolvê-la. Esperemos que quem chora, ponha pra fora todas as lágrimas e, então, proponhamos uma alegria como o próximo passo. Nisso Deus sorri!
Onaldo Alves Pereira

segunda-feira, 16 de março de 2009

Pisa com cuidado

Pisa com cuidado para não machucar, para deixar apenas sinais alegres, para fazer trilhas que sirvam a outros, para apagar as cicatrizes que deixaram antes, para despertar possibilidades boas! Pisa bem, pisa para mais, pisa leve, com a alma e, dela, deixando o melhor onde for.
Onaldo Alves Pereira

A maior causa de sofrimento humano é a ignorância

A maior causa de sofrimento humano é a ignorância. Sofre-se por não saber. O não entendimento das coisas desestabiliza a capacidade de lidar com elas com sentido e isso faz sofrer.
Aumenta esse sofrimento a solidão. O não saber individual enfraquece a auto-estima, desencadeia as comparações, estimula a auto-depreciação e favorece o pânico.
Apesar da oferta de um credo que supostamente deveria responder a todas as grandes questões existenciais, a comunidade religiosa é de fato uma associação de ignorantes. Na união cria-se uma impressão de certeza. A consciência de ignorância é minorada pela vontade coletiva de saber, que se traduz numa elaboração de fé que não é o mesmo que conhecimento.
Esse esforço tem a sua eficácia abalada e os resultados terapêuticos diminuídos quanto mais ela insiste numa certeza coletiva. Isso cria tensão, racha a unidade por desencadear uma necessidade de afirmação dessa certeza crônica de tal forma que, ao primeiro sinal de fraqueza da mesma, cria-se outra, ou faz-se uma diferenciação da velha. Daí os cismas e heresias presentes em toda a histórias de comunidades de fé.
Uma comunidade terapêutica seria mais eficaz em seu objetivo ao assumir o espaço da ignorância coletiva como fator existencial humano, com o qual nem sempre sabe agir.
Não sabemos, por isso sofremos e temos medo, o que nos une, em primeiro lugar.
Depois, se cabe uma certeza nessa comunidade, que ela seja elaborada coletivamente, seja benigna, não excludente, passível de ser questionada e, sobretudo, pequena.

Onaldo Alves Pereira

sexta-feira, 13 de março de 2009

Verdadeira liberdade

Só é livre de fato aquele que não pode mais ser senhor. Enquanto persiste a possibilidade de tomarmos o senhorio sobre algo ou alguém, nos colocamos também sob o domínio de outrem. O livre não precisa e nem consegue ser senhor. A liberdade pressupõe extinção de domínio, do outro ou nosso.

Essa liberdade começa dentro da gente, onde não temos mais que responder a quaisquer demandas, seja do medo, da necessidade ou do dever.
Só ama plenamente quem é livre assim.

Onaldo Alves Pereira

quarta-feira, 11 de março de 2009

Antes errar com liberdade

Antes errar com liberdade do que acertar em servidão. É preferível sofrer as conseqüências de um ato livre do que receber as bênçãos de uma obediência.
Só a liberdade desenvolve indivíduos amorosamente responsáveis e com a capacidade de progredir. A servidão sempre deforma o caráter e torna o bem uma penosa obrigação.
Só, de fato, faz o bem quem o aprecia e com liberdade opta por ele. O que vem da obediência às leis nunca passa da superfície e é frágil.
As sociedades mais avançadas são também as mais livres. As autoritárias e legalistas patinam num moralismo hipócrita.
O indivíduo que livremente inventa o seu bem e o constrói segundo a sua consciência é artista da vida. O que faz segundo lhe é dito realiza o pior serviço e sofre.
A matéria-prima da liberdade é o conhecimento, a beleza e o respeito. Com esse material a pessoa pode erguer a cabeça em sublime apreciação de si mesma e do mundo e, ser livre.
Onaldo Alves Pereira