terça-feira, 7 de abril de 2009

Velório Atrapalhado

“Moreninha linda do meu bem querer...” O rádio Brastemp novinho cantava contido, não o deixavam soltar, como queria a modinha apaixonada que as ondas lhe metiam dentro. A moça, também chateada, amaldiçoava o defunto marido da vizinha, causa dessa moderação forçada. Mas, a cada pensamento mau, puxava uma Ave Maria em intenção da alma do Nego da Zica, o que lhe acabava atrapalhando ainda mais. Tinha medo de ele lhe aparecer, em castigo ao desrespeito cometido. A coitada nunca estivera tão embaralhada e confusa, a moda bonita, as rezas, o medo, a raiva, tudo fervendo nela.
O vendeiro também balbuciava Ave Marias e Padre Nossos, enquanto entre um calafrio e outro, somava satisfeito o que ganhara vendendo pinga para o velório do amigo. Só ficava de plantão quando tinha festa ou morria gente, no último caso deixava só uma porta aberta e uma lamparina acesa, como se estivesse já fechando; senão pegava mal e o povo podia falar mais do que de costume. Quando morria quem era apenas conhecido era fácil, mas, vizinho de rua e ainda por cima amigo, aí a coisa apertava. O vendeiro tinha medo de assombração e mesmo que em velório todo mundo bebesse alguém tivesse que fornecer a cachaça; o negócio era mal visto e tinha gosto de pecado. Muitos dos finados, nas mortes dos quais faturava, tinham aparecido pra ele, pedindo reza, fazendo ameaças ou só assustando. O proibido atrai, apesar das conseqüências, o vendeiro fazia o seu negócio como quem tira moça de família, com prazer doído.
A conversa na cozinha saía de um abafado gemido para um tom de festa. Tunica fazia precata na frigideira, Geroma coava café fresco e dois tipos de prosa cruzavam-se desentendidas.
- O coitadim morreu de congestã, cumeu gabiroba e bebeu leite; tão novim, muié e fio pra criá.
- Isso é assim mesmo sô, o Tota era tão machu agora tá tão machucado; ele e a muié precisa é de sova, sô.
- Cê viu o difunto? Parece que tá druminu, tão bunitinho.
- A tia do morto vai intorná loguim, num choro de dó do subrim, chora de bêba, vai vê que é a marafa que tá vazano pelos os zói dela.
Na sala o morto esticado no banco de peroba, com o paletó de casimira do casamento e os tornozelos amarrados com a embira que sobrou da amarração de pamonha de ontem. Ninguém sabe mas, além da gabiroba e do leite o bucho do danado tivera que lidar também com umas três pamonhas de sal, com pequi.
A velha Maria Preta pendurou o rosário no pescoço, lambeu os beiços e saiu puxada pelo cheiro de pamonha quentada na chapa. Agora era o defunto; com o queixo amarrado ao crânio por um lenço branco, e o Pedroca, um aleijadinho, vítima de constipação. Ele saiu da queimada de corvara na roça e puxou no poço do córrego da Anta, não andou mais.
Pedroca revoltado pensou que deviam tê-lo deixado pelo menos sentado num ângulo diferente, mas não, estava de cara para o morto, vendo-o de cheio. Suores frios e Ave Marias escorreram do aleijado, ambos pelo finado, que com essa ganhava mais rezas, sentidos, mastigadas, cuspidas mas, em sua intenção.
Da cozinha ouvia-se cada vez mais prosas esquecidas do morto, ligadas aos vapores de pinga e à lama comum, amassada todos os dias pelas línguas das comadre e compadres da vila.
- Ele tá inrrabichado da subrinha cumpade...
- Cê é que fala que nem uma tramela muié...
- Tome tenência sô, num minstura quêis que te avisei...
A Zulmira chegou na porta, olhou pra lua e disse:
- Óia que tem uma estrela perto da lua, no circo dela, é outra morte!
A embira podre quebrou, o defunto abriu as pernas sentou-se no banco, Pedroca ficou no mesmo instante curado e correu pra cozinha gritando que o morto revivera, a Zulmira olhou da porta viu o fato, segurou o pescoço e despencou no meio de um vômito azul.
- A Zulmira lançô, ela tá tenu uma sapituca.
- A veia feis foi batê as bota memo.
- Curuis credo, Virge Maria, qui noiti grandi sô.
Quem ainda não estava bêbado demais para fugir correu, na frente o Pedroca. Um pouco de gente entrou na venda e afogou o susto na caninha Tatu, outro grupo foi vagando rua acima e os mais corajosos voltaram e descobriram a marmota da situação.
A moça cobriu a cabeça com o cobertor, puxou o rádio pra junto do ouvido, esconjurou a gritaria do velório, “o povo ficou bêbado antes do amanhecer”, pensou. – Que noite grande essa; falou, sungando o volume do rádio – “Baile na roça meu bem se dança assim...” Cantavam indiferente Tonico e Tinoco; que a noite era grande!
Onaldo Alves Pereira

5 comentários:

  1. Cara, me deliciei aqui... Que causo bão demais da conta, sô!

    Belo blog!

    Passa lá no meu:

    www.marcelo-antunes.blogspot.com

    Sucesso!

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  2. Muito Boa Crônica,gostei do blog em si.

    http://ingdsilva.blogspot.com/

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  3. cara, que belo texto. este tipo de literatura que recupera as raizes regionais com algumas referências que podemos chamar de "folk-pop" (ex. rádio brastemp, musica de tonico e tinoco), é a melhor que há.
    valew, vou seguir este teu blog. sinto que ainda terei uns bons pedaços de alegria por aqui.

    abraço.

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  4. Show de bola. Várias palavras de costume local. Ficaram muito bem colocadas no texto.

    Abraço!
    http://eu-amo-a-ey.blogspot.com/

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  5. Obrigada! Ainda não estou muito acostumada com blog's...
    A observação que fez (no meu blog) é interessante.. A vida é mesmo um teatro e as personagens interpretam seus papéis 'plausivelmente', mas possuem um lado oculto que talvez nunca cheguem a conhecer - por estarem impregnadas por suas personagens - não mantêm um elo consigo mesmas.

    P.S: Há muito o que apreciar por aqui ! bacana o blog ! Bjs.

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