quinta-feira, 30 de abril de 2009

Buscar a Deus

Buscar a Deus é como cair em um abismo, é sentir-se indo descontroladamente rumo ao desconhecido. O raciocínio, como ajuda, deixa de existir; a nossa força é completamente anulada; a queda é livre, o fundo não existe. A possibilidade de interrupção de esse cair inexiste. O caminho destrói todas as funções de nosso ser. Quando paramos de lutar, quando nos entregamos ao fato e nos deixamos carregar, tornando-nos a própria queda e o abismo, aí chegamos e conhecemos a paz. A entrega tem que ser radicalmente total.
As emoções e os sentimentos são engolidos pela impossibilidade de serem. Desejar, querer e sonhar são vomitados pela sua própria inutilidade.
A paz de se ter chegado não pode ser descrita, pois só pertence, seu entendimento e prova, a quem chegou e esses não podem falar, o silêncio do próprio silêncio é o único movimento de tais seres – todos os seres, um dia.
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 21 de abril de 2009

Toma e come



- Toma e come, este é o meu corpo; diz a mãe, achegando a boca da criança ao seu seio.
Essa é a mais graciosa das eucaristias. Essa é a única autoridade cabível no Universo!
Onaldo Alves Pereira

segunda-feira, 20 de abril de 2009

E se

E se a voz dos profetas nada mais é que a voz de atores?
E se os grandes dramas míticos da humanidade nada mais são que peças de um bom teatro?
E se os avataras, papéis desempenhados por bons artistas?
E se as visões grandiosas dos santos, delírios de mentes apaixonadas?
E as promessas, arroubos de corações generosos?
Perderemos a fé? Desacreditaremos do Caminho? Renegaremos a revelação? Claro que não, pelo contrário, robustecida fica a nossa alegria por ser o ser humano tão ligado ao Divino que, fazendo de conta, fala a Palavra de Deus, revela o Seu rosto e realiza todos os sonhos sagrados! Que, de fingir, faz de conta que é o que deveras é e sempre foi. Esse fingir, de fato desfinge, pois, pretender não Ser é que seria fingir.
O mundo todo está encoberto por uma capa, por um fingimento doído e, dele derivam todas as dores, todos os sofreres. É de se fazer de conta que não somos em Deus e, de Deus, face e coração, que perdemos o rumo.
Olhamos os rostos uns dos outros através de uma poeira, às vezes fina e, então, chegamos a quase adivinhar a Verdade que é neles, noutras vezes, é tão densa a poeira que mal conseguimos reconhecer naquela pessoa um pouco que seja da Verdade e, aí, desatam-se os nós que nos seguram e acontecem as grandes tragédias.
O Espírito de Deus sopra essa poeira e restaura a Verdade, mostra o rosto de Deus nos rostos e, neles, a Alegria da Presença.
Onaldo Alves Pereira

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Cara feia


Cara feia
Aprendemos a dar autoridade à cara feia e à tristeza. Precisamos aprender a conferir maior autoridade ainda ao riso e à alegria!

Onaldo Alves Pereira

Borboletas

Borboletas no casulo
livres em teias tão leves
transformadas no virar do dia
em si mesmas, com asas eternas.

Onaldo Alves Pereira

A lavagem da santa

- Não há de ver que ela teve a tamanha capacidade de lavar a santa na data errada! Uma barbaridade. Quem faz um absurdo desses, arrenega a Cristo e faz maligna a própria alma. Curuiscredo, Ave Maria, que desespero de causa, cair numa danação dessas.
O velho tingia o pano no tacho e soltava o verbo, a cada início de frase metia com mais força a vara no tecido e, segurando o cotovelo direito com a mão esquerda, dava uma revirada nele.
- Maria, me diga, que diacho tava no seu coro, mulher, pra fazer uma danura dessas?
- Ora Zico, que a santa tava suja de poeira, mal dava pra ver seu vulto, tadinha dela.
- Mais só no dia certo, se não, desanda tudo, como tá acontecendo; o sabão não deu ponto, os ovo da galinha amarela chocou, ocê tá perrengue e, eu, aperriado da gota.
- Ora sô, que vai vê foi mais a sujeira da santa que provocou tudo isso, ocê faiz umas promessa atravessada de só lavá ela de ano em ano, vai ela castiga, que nem santo tolera imundíça.
- Num me irrita sua herege, gemeu o velho levantando o pau e metendo-o com toda a força no tacho. As pedras que faziam a fornalha arredaram, o tacho esborrachou-se no fogo e foi água tingida, brasa, cinza e pano pra todo lado.
Os dois receberam, cada um, os machucados cabidos no caso e, a culpa de todas as desgraças ficou com a velha, que queria limpa a santa.
Desde essa data construiu-se uma capela para a santa e, todo ano, na data certa, a vizinhança de perto e de longe, fazia novena e lavava a imagem milagrosa, que havia castigado o casal desobediente com queimaduras, ossos partidos e muita dor.
É assim que Deus exempla as suas criaturas, para que não se desviem da devoção correta, todos agora sabem!
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 14 de abril de 2009

O amor que liberta


O que o amor permite é legítimo. O que o amor não provoca não vale a pena. Só os limites impostos pelo amor são lícitos. Só a liberdade concedida pelo amor de fato liberta. Qualquer poder que não o do amor trabalha contra a vida.
Onaldo Alves Pereira

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Nenhum poder a não ser a ternura.
Só a carícia para alisar superfícies ásperas!
Onaldo Alves Pereira

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Costura-me

Costura-me com linhas de amor, coloridas linhas de amor
Desenha-me com traços de amor, coloridos traços de amor!
Pensa-me com pensares de amor
bonitos pensares de amor!
Sente-me com sentidos de amor
bonitos sentidos de amor!

E eu serei, então, de Deus
Seu rosto no mundo a sorrir
sorrisos de terno e belo amor!
Onaldo Alves Pereira

terça-feira, 7 de abril de 2009

Velório Atrapalhado

“Moreninha linda do meu bem querer...” O rádio Brastemp novinho cantava contido, não o deixavam soltar, como queria a modinha apaixonada que as ondas lhe metiam dentro. A moça, também chateada, amaldiçoava o defunto marido da vizinha, causa dessa moderação forçada. Mas, a cada pensamento mau, puxava uma Ave Maria em intenção da alma do Nego da Zica, o que lhe acabava atrapalhando ainda mais. Tinha medo de ele lhe aparecer, em castigo ao desrespeito cometido. A coitada nunca estivera tão embaralhada e confusa, a moda bonita, as rezas, o medo, a raiva, tudo fervendo nela.
O vendeiro também balbuciava Ave Marias e Padre Nossos, enquanto entre um calafrio e outro, somava satisfeito o que ganhara vendendo pinga para o velório do amigo. Só ficava de plantão quando tinha festa ou morria gente, no último caso deixava só uma porta aberta e uma lamparina acesa, como se estivesse já fechando; senão pegava mal e o povo podia falar mais do que de costume. Quando morria quem era apenas conhecido era fácil, mas, vizinho de rua e ainda por cima amigo, aí a coisa apertava. O vendeiro tinha medo de assombração e mesmo que em velório todo mundo bebesse alguém tivesse que fornecer a cachaça; o negócio era mal visto e tinha gosto de pecado. Muitos dos finados, nas mortes dos quais faturava, tinham aparecido pra ele, pedindo reza, fazendo ameaças ou só assustando. O proibido atrai, apesar das conseqüências, o vendeiro fazia o seu negócio como quem tira moça de família, com prazer doído.
A conversa na cozinha saía de um abafado gemido para um tom de festa. Tunica fazia precata na frigideira, Geroma coava café fresco e dois tipos de prosa cruzavam-se desentendidas.
- O coitadim morreu de congestã, cumeu gabiroba e bebeu leite; tão novim, muié e fio pra criá.
- Isso é assim mesmo sô, o Tota era tão machu agora tá tão machucado; ele e a muié precisa é de sova, sô.
- Cê viu o difunto? Parece que tá druminu, tão bunitinho.
- A tia do morto vai intorná loguim, num choro de dó do subrim, chora de bêba, vai vê que é a marafa que tá vazano pelos os zói dela.
Na sala o morto esticado no banco de peroba, com o paletó de casimira do casamento e os tornozelos amarrados com a embira que sobrou da amarração de pamonha de ontem. Ninguém sabe mas, além da gabiroba e do leite o bucho do danado tivera que lidar também com umas três pamonhas de sal, com pequi.
A velha Maria Preta pendurou o rosário no pescoço, lambeu os beiços e saiu puxada pelo cheiro de pamonha quentada na chapa. Agora era o defunto; com o queixo amarrado ao crânio por um lenço branco, e o Pedroca, um aleijadinho, vítima de constipação. Ele saiu da queimada de corvara na roça e puxou no poço do córrego da Anta, não andou mais.
Pedroca revoltado pensou que deviam tê-lo deixado pelo menos sentado num ângulo diferente, mas não, estava de cara para o morto, vendo-o de cheio. Suores frios e Ave Marias escorreram do aleijado, ambos pelo finado, que com essa ganhava mais rezas, sentidos, mastigadas, cuspidas mas, em sua intenção.
Da cozinha ouvia-se cada vez mais prosas esquecidas do morto, ligadas aos vapores de pinga e à lama comum, amassada todos os dias pelas línguas das comadre e compadres da vila.
- Ele tá inrrabichado da subrinha cumpade...
- Cê é que fala que nem uma tramela muié...
- Tome tenência sô, num minstura quêis que te avisei...
A Zulmira chegou na porta, olhou pra lua e disse:
- Óia que tem uma estrela perto da lua, no circo dela, é outra morte!
A embira podre quebrou, o defunto abriu as pernas sentou-se no banco, Pedroca ficou no mesmo instante curado e correu pra cozinha gritando que o morto revivera, a Zulmira olhou da porta viu o fato, segurou o pescoço e despencou no meio de um vômito azul.
- A Zulmira lançô, ela tá tenu uma sapituca.
- A veia feis foi batê as bota memo.
- Curuis credo, Virge Maria, qui noiti grandi sô.
Quem ainda não estava bêbado demais para fugir correu, na frente o Pedroca. Um pouco de gente entrou na venda e afogou o susto na caninha Tatu, outro grupo foi vagando rua acima e os mais corajosos voltaram e descobriram a marmota da situação.
A moça cobriu a cabeça com o cobertor, puxou o rádio pra junto do ouvido, esconjurou a gritaria do velório, “o povo ficou bêbado antes do amanhecer”, pensou. – Que noite grande essa; falou, sungando o volume do rádio – “Baile na roça meu bem se dança assim...” Cantavam indiferente Tonico e Tinoco; que a noite era grande!
Onaldo Alves Pereira

Malemal

Malemal equilibrado, aquele arranjo de cores, ia ameaçando espalhar-se pelo negro sujo do asfalto.
O carrinho lotado em sua capacidade e mais um milagroso pouco de frutas variadas e de flores algumas, uns pés de alfaces e, o que me interessava no momento, naquele caos, a Folha de São Paulo. Anunciando item por item numa cantinela entrecortada de gemidos e upas e ôpas, aos quase apocalipses do conjunto, a cada bacada, nessa volta ou naquele desvio, o vendedor fazia o seu comércio com sucesso. Comprei dele a Folha de São Paulo, como às vezes faço aos domingos, ao preferir não ter que caminhar até a banca.
Assim começa meu dia. Pretendo pouco dele, ler, prosear com os de casa, escrever, mimar os bichos, assuntar o tempo, puxar uma soneca e, é claro, estou aberto, sempre, a boas surpresas.

Onaldo Alves Pereira
A minha religião é a vida e se manifesta inteira em cada ser. A tradição que uso para manifestá-la simbolicamente é uma peça numa imensa obra de arte. O seu valor só aparece por completo nesse todo. O isolamento só empobrece a parte. Celebro a minha religião na tradição que agrada a minha alma, que afaga meu corpo e enfeita meu espaço.
Onaldo Alves Pereira

Somos


Somos a planta alimentada pela respiração do Amado
Somos o corpo que responde ao toque da Amada
Somos a tela onde o Artista se coloca
Somos a tinta da arte da Pintora
Somos o olhar que seduz
Somos o sono que recebe o Sonho
Somos no Ser que é Mais!
Onaldo A. Pereira